Vão sendo conhecidos os primeiros números sobre a prática do aborto no quadro da nova lei que o veio liberalizar. Certamente que ainda é cedo para tirar desses números conclusões definitivas. Mas os números até agora conhecidos demonstram que, se a tendência se mantiver, tal prática corresponderá a menos de metade do que o Governo previa.
Essas previsões, tal como as de outras proveniências que se vinham repetindo desde há vários anos, não tinham uma base segura e rigorosa. Apontavam para os vinte mil (um quinto do número de nascimentos) porque tal corresponde à média europeia (acima dessa média encontram-se países de entre os mais desenvolvidos, como a Suécia, a França e o Reino Unido). Um estudo da A.P.F., divulgado antes do referendo e apresentado como fiável, também apontava para esses números. Noutros tempos, a propaganda dos partidários da liberalização do aborto chegou a apontar números muito mais elevados (chegou a falar-se nas centenas de milhar), sem qualquer fundamento, como agora bem se vê.
Considerar que em Portugal se praticavam tantos abortos quantos os que, em média, se praticam nos países da Europa onde essa prática está amplamente legalizada era partir do princípio (não demonstrado) de que a proibição em nada influía no volume dessa prática e que, por isso, mais valia permitir que se fizesse legalmente o que sempre se faria na clandestinidade. Nunca aceitei este princípio, que ignora, desde logo, a eficácia pedagógica inerente à mensagem cultural de uma lei que define uma conduta como crime. E o efeito que pode ter, nesse e noutros aspectos, uma lei (como a que agora foi aprovada) que passe a facilitar essa conduta, colocando ao seu serviço os recursos do Estado. Qualquer política legislativa assenta, pelo contrário, na ideia de que legalizar e liberalizar uma conduta só pode conduzir ao incremento da sua prática.
Compreende-se que haja estudos que indicam que as mulheres que abortam legalmente, numa significativa percentagem, afirmam que não o fariam se o aborto fosse legal. Na Irlanda, é possível tornear a lei que criminaliza o aborto com uma fácil deslocação ao Reino Unido. Mas os abortos aí praticados por mulheres irlandesas são, proporcionalmente, em muito menor número do que os das mulheres da própria Grã-Bretanha. Na Polónia, depois das alterações que restringiram fortemente os casos de legalização do aborto, este continua a ser praticado clandestinamente, mas em número muito inferior ao do período em que tal prática estava liberalizada.
Nunca me pareceu decisivo discutir os números exactos da prática do aborto clandestino em Portugal. Fossem eles maiores ou menores, seriam sempre suficientemente elevados para recusar uma liberalização que, por imperativo da lógica, sempre contribuiria para que fossem ainda mais elevados.
Se os números agora divulgados revelam que o número de abortos praticados em Portugal é inferior a metade da média europeia (e pode, até, admitir-se que alguns destes só se realizam porque a lei o permite), tal só poderá significar que, afinal, a proibição e criminalização do aborto (independentemente do número reduzido de condenações) teve algum efeito, pelo menos no plano pedagógico. A lei evitou, pelo menos (e já não é pouco), a banalização desta prática na mentalidade comum, que se verifica noutros países europeus até económica e socialmente mais desenvolvidos.
O que pode, agora, temer-se é que essa “resistência” cultural enfraqueça gradualmente com a vigência da nova lei, provocando, a partir de agora sim, a progressiva aproximação à média europeia e o progressivo aumento do número de abortos, como se tem verificado em Espanha com uma lei não tão permissiva como a que entre nós foi aprovada.
Foi com grande amargura que notei a frieza de responsáveis governativos que indicavam, resignadamente, que se poderia esperar um número de vinte mil abortos anuais. Uma frieza e uma resignação que a todos chocaria se se referissem a outro tipo de mortes, por doença ou acidente. Ninguém aceitará que os números de mortes por doença ou acidente não se reduzam ao mínimo, ou não façamos tudo para evitar essas mortes. É muito mais fácil evitar um aborto do que uma qualquer outra morte. E em nenhuma destas o Estado colabora activamente, como se verifica agora com o aborto.
Por detrás dos números do aborto, de cada um deles, está a riqueza única e insubstituível de uma vida humana que se perde. É esta consciência que anima o empenho de quem lutou para manter uma lei que evitou que, como agora se vê, muitas dessas vidas se perdessem. E de quem, através do apoio às grávidas em dificuldade, continua a evitar que algumas dessas vidas se percam.
Pedro Vaz Patto
Essas previsões, tal como as de outras proveniências que se vinham repetindo desde há vários anos, não tinham uma base segura e rigorosa. Apontavam para os vinte mil (um quinto do número de nascimentos) porque tal corresponde à média europeia (acima dessa média encontram-se países de entre os mais desenvolvidos, como a Suécia, a França e o Reino Unido). Um estudo da A.P.F., divulgado antes do referendo e apresentado como fiável, também apontava para esses números. Noutros tempos, a propaganda dos partidários da liberalização do aborto chegou a apontar números muito mais elevados (chegou a falar-se nas centenas de milhar), sem qualquer fundamento, como agora bem se vê.
Considerar que em Portugal se praticavam tantos abortos quantos os que, em média, se praticam nos países da Europa onde essa prática está amplamente legalizada era partir do princípio (não demonstrado) de que a proibição em nada influía no volume dessa prática e que, por isso, mais valia permitir que se fizesse legalmente o que sempre se faria na clandestinidade. Nunca aceitei este princípio, que ignora, desde logo, a eficácia pedagógica inerente à mensagem cultural de uma lei que define uma conduta como crime. E o efeito que pode ter, nesse e noutros aspectos, uma lei (como a que agora foi aprovada) que passe a facilitar essa conduta, colocando ao seu serviço os recursos do Estado. Qualquer política legislativa assenta, pelo contrário, na ideia de que legalizar e liberalizar uma conduta só pode conduzir ao incremento da sua prática.
Compreende-se que haja estudos que indicam que as mulheres que abortam legalmente, numa significativa percentagem, afirmam que não o fariam se o aborto fosse legal. Na Irlanda, é possível tornear a lei que criminaliza o aborto com uma fácil deslocação ao Reino Unido. Mas os abortos aí praticados por mulheres irlandesas são, proporcionalmente, em muito menor número do que os das mulheres da própria Grã-Bretanha. Na Polónia, depois das alterações que restringiram fortemente os casos de legalização do aborto, este continua a ser praticado clandestinamente, mas em número muito inferior ao do período em que tal prática estava liberalizada.
Nunca me pareceu decisivo discutir os números exactos da prática do aborto clandestino em Portugal. Fossem eles maiores ou menores, seriam sempre suficientemente elevados para recusar uma liberalização que, por imperativo da lógica, sempre contribuiria para que fossem ainda mais elevados.
Se os números agora divulgados revelam que o número de abortos praticados em Portugal é inferior a metade da média europeia (e pode, até, admitir-se que alguns destes só se realizam porque a lei o permite), tal só poderá significar que, afinal, a proibição e criminalização do aborto (independentemente do número reduzido de condenações) teve algum efeito, pelo menos no plano pedagógico. A lei evitou, pelo menos (e já não é pouco), a banalização desta prática na mentalidade comum, que se verifica noutros países europeus até económica e socialmente mais desenvolvidos.
O que pode, agora, temer-se é que essa “resistência” cultural enfraqueça gradualmente com a vigência da nova lei, provocando, a partir de agora sim, a progressiva aproximação à média europeia e o progressivo aumento do número de abortos, como se tem verificado em Espanha com uma lei não tão permissiva como a que entre nós foi aprovada.
Foi com grande amargura que notei a frieza de responsáveis governativos que indicavam, resignadamente, que se poderia esperar um número de vinte mil abortos anuais. Uma frieza e uma resignação que a todos chocaria se se referissem a outro tipo de mortes, por doença ou acidente. Ninguém aceitará que os números de mortes por doença ou acidente não se reduzam ao mínimo, ou não façamos tudo para evitar essas mortes. É muito mais fácil evitar um aborto do que uma qualquer outra morte. E em nenhuma destas o Estado colabora activamente, como se verifica agora com o aborto.
Por detrás dos números do aborto, de cada um deles, está a riqueza única e insubstituível de uma vida humana que se perde. É esta consciência que anima o empenho de quem lutou para manter uma lei que evitou que, como agora se vê, muitas dessas vidas se perdessem. E de quem, através do apoio às grávidas em dificuldade, continua a evitar que algumas dessas vidas se percam.
Pedro Vaz Patto