SALVADOR, domingo, 11 de maio de 2008 (ZENIT.org).
O simples fato de discutir sobre a possibilidade do aborto já abre a porta para «uma deformação da cultura, para uma mentalidade que cultiva uma sensibilidade perversa, na qual a morte aparece como solução».
É o que afirma nesta entrevista a Zenit Dom João Carlos Petrini, bispo auxiliar de Salvador (Bahia), especialista em questões de vida e família. Dom Petrini foi perito na Conferência de Aparecida no âmbito da bioética.
--Como está a questão demográfica no Brasil?
--Dom João Carlos Petrini: O índice de natalidade no Brasil está nos níveis da pura reposição. Cada mulher está em média gerando dois filhos. Isso quer dizer que os dois filhos gerados por uma mulher repõem o pai e a mãe que futuramente irão morrer. Nesse sentido, do ponto de vista demográfico, este é um índice pelo qual a população não cresce mais e fica apenas, digamos assim, num intercâmbio positivo. Abaixo de dois filhos por mulher começamos a ter aquilo que se chama de inverno demográfico, assim como acontece em muitos países da Europa, e com um processo de envelhecimento, porque os jovens vão diminuindo e os idosos continuam prolongando a sua vida graças a recursos da medicina. Isso cria desequilíbrios demográficos e desequilíbrios nas contas de qualquer nação. Porque se avolumam os gastos com aposentadoria, com saúde dos idosos, e não há jovens suficientes que possam repor os idosos e trabalhar para poder pagar inclusive a conta da população que vai envelhecendo. É claro que a população brasileira continua aumentando como número absoluto. Não por causa de uma exagerada reprodução, como se poderia pensar há 20 ou 30 anos atrás. Mas por causa do aumento da expectativa de vida, graças às condições melhores de higiene, de saúde, das condições gerais de existência. A vida média que era, no começo do século passado, de 33 anos para um brasileiro, agora está em torno de 70 anos e acima de 70 anos. Mas esse crescimento do número absoluto da população brasileira é uma questão de pouco tempo. Na realidade, os índices de reprodução estão nesse momento na posição ideal.
--Que consequências uma cultura que agride a vida humana pode trazer?
--Dom João Carlos Petrini: A agressão à vida tem consequências incalculáveis. Porque, além da agressão em si, isso também cria uma mentalidade: a idéia de que a existência humana pode ser eliminada. Assim, a vida humana quando atrapalha, poderia ser posta fora de cena, ser liquidada. Isso cria um ambiente difícil na convivência social, em que depois acontecem formas de violência que são absurdas. Pais que matam filhos, filhos que matam pai e mãe... Discutir, conversar sobre a possibilidade do aborto abre a porta para uma deformação da cultura, para uma mentalidade que cultiva uma sensibilidade perversa, na qual a morte aparece como solução. Toda a nossa civilização foi construída exatamente na percepção de uma potência divina mais forte do que a morte: a ressurreição de Cristo.
Devido a essa potência divina oferecida, doada a nós por Jesus, foi que o fez com que desde os primeiros tempos as comunidades cristãs cuidassem dos órfãos, das viúvas, dos leprosos, dos doentes em geral. E é por isso que no seio da Igreja nasceram os orfanatos, as Santas Casas de Misericórdia, os hospitais e os cuidados com as pessoas rejeitadas por todos e abandonadas. Isso significa que a vida é mais poderosa do que a morte, porque a morte foi vencida. E por isso nós abraçamos, amamos e cultivamos a vida, especialmente lá onde ela aparece mais vulnerável e frágil.
Quando agora começamos a dizer que a morte pode ser para nós uma solução, uma resposta, nós subvertemos o fundamento da civilização ocidental. E com consequências que nós não podemos avaliar adequadamente, em termos de incentivo à violência e à destruição. Temos muitas razões para amar a vida. Em primeiro lugar porque a vida humana é uma grande dádiva, um dom extraordinário. E temos muitos motivos para acolhê-la e protegê-la. Diante da existência humana, não podemos apenas nos apresentar com cálculos mesquinhos de utilidades, de conveniências, de pesos, de atrapalhações. Temos de abrir um pouco o nosso horizonte, como que seguindo um convite que nos fez o Papa Bento XVI de alargar o uso da razão para compreender toda a riqueza e toda a grandiosidade de uma existência humana. É um sinal de dignidade, de grandeza, o sacrifício, a dedicação que um homem, uma mulher, pode dar de si para acolher, prot eger e ajudar a vida humana a crescer.
--Hoje se fala de uma ecologia humana...
--Dom João Carlos Petrini: Uma carta encíclica do Papa João Paulo II, Centesimus Annus, nos números 38 e 39, traz uma proposta que foi um pouco esquecida. O Papa fala da necessidade de uma ecologia humana. Nós demoramos 200 anos para entender que não é possível utilizar todo o poder técnico de que dispomos para depredar a natureza, porque a natureza tem a sua própria finalidade, que deve ser respeitada. Respeitar as águas dos rios, as florestas, as espécies animais, o ar, é fundamental. Do mesmo modo, nós devemos entender que é necessário respeitar limites quando se trata da existência humana. A ecologia humana significa uma atenção para preservar a dignidade. Para preservar especificamente o humano do homem. Para que o homem não vire um animal, onde se devora um ao outro.
Todo o Brasil se comoveu, chocado, com a morte da menina Isabella. Aqueles que ainda não nasceram são iguais à Isabella, só um pouco menores de tamanho e de idade. Mas em nada diferentes, mesmo estando dentro do ventre materno, ainda terminando a primeira etapa da sua formação. Mas são idênticos àquela menina Isabella, que foi arremessada de uma janela no sexto andar de um prédio em São Paulo. Nós não queremos que nenhuma mulher e nenhum homem carreguem o peso de estar destruindo vidas humanas, porque isso é algo que não está ao nosso dispor, não está no nosso poder. E por isso é uma transgressão grave à lei divina, inclusive à lei da natureza.