Engoliu cinco comprimidos e introduziu outros tantos na vagina. "Sabe o que me vai acontecer?", pergunta, num tom assustado, a aluna da Escola Profissional da Torredeita, em Viseu. O país inteiro sabe que interrompeu uma gravidez de 20 semanas com Cytotec, um fármaco indicado para úlceras gástricas e duodenais. Enquanto se contorcia de dor, ali, na residência estudantil, alguém ligou à GNR.
A rapariga, de 19 anos, está deitada numa cama do Hospital de São Teotónio. A mãe dela está deitada numa cama de um outro hospital, em Cabo Verde. A mãe caiu de cama ao receber a notícia pela boca de um primo que estuda na mesma escola em que a filha cursa contabilidade. Não havia maneira de lhe esconder aquilo, o director do estabelecimento de ensino até convocou uma conferência de imprensa. Sabendo-a "estável, em observações", a Polícia Judiciária não quis perder tempo. Já lá foi interrogá-la. Os inspectores insistiram numa pergunta: "Tem a certeza de quem é o pai?" Tem, sem sombra de dúvida. É o namorado, um cabo-verdiano a estudar no Algarve e a visitá-la amiúde."Ele nunca quis a criança." Não era só ele. A mãe também reprovava a gravidez. E "o desespero falou mais alto" dentro dela. "Eu queria ter o bebé e só fiz isto porque não tinha apoio de ninguém", tenta dizer ao mundo que já a julga e ainda não a ouviu. Agora, arrisca até três anos de prisão.
Falta informação
Não basta mudar a lei, como se fez há seis meses na sequência do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas em estabelecimento de saúde autorizado. "É muito importante haver informação, sublinha Ana Campos, obstetra da Maternidade Alfredo da Costa. Talvez esta rapariga tivesse tomado uma decisão mais cedo se soubesse que seria "fácil arranjar as terapias ao ir a um hospital a tempo e horas". "Há sectores da população que têm menos acesso à informação", que não sabem "como é que as coisas funcionam", nota Duarte Vilar, da Associação para o Planeamento Familiar. E é por isso - ou por dificuldades em aceder aos serviços de saúde, por vergonha, por terem deixado ultrapassar o prazo legal - que continua a haver quem recorra ao aborto clandestino em Portugal.
Cytotec resiste
A rapariga pediu os comprimidos a uma colega que deles precisa para amansar dores de estômago. Andava a pedi-los desde o último Natal. A colega cedeu-lhos. E ela tomou-os nessa mesma noite. Pensou que ao tomá-los, o seu corpo expulsaria um feto morto e a vida recomeçaria sem embaraço. Não era a primeira vez que estava a utilizar aquele método. Usou-o há cerca de um ano, estava grávida de "pouco mais de um mês", abortou numa "clínica em Lisboa" e não teve problemas. O laboratório que comercializa o Cytotec já telefonou para o Hospital de Viseu - desejava saber como estava a rapariga, quantos comprimidos tomara. Há três anos, uma miúda de 14 anos, grávida de 20 semanas, entrou no Hospital Santa Maria, em Lisboa, com uma overdose de Cytotec. Tomara 64 comprimidos, não resistiu. O laboratório tem avisado que o fármaco não é indicado para esse efeito, o aborto pode não se consumar, o bebé pode nascer com sequelas neurológicas. O seu uso, porém, generalizou-se nos serviços públicos de saúde (como indutor de partos) e cá fora (como um método de aborto barato e solitário). O último estudo elaborado antes do referendo sobre prática de aborto em Portugal, indicava que 25 por cento recorria a comprimidos. O medicamento era arranjado por pessoa amiga (51,9 por cento), fornecido no hospital (23,1) ou comprado na farmácia. Sobrevive um mercado paralelo como ainda segunda-feira retratava o PÚBLICO. Mulheres que recorrem ao método que já conhecem. A rapariga ingeriu os dez comprimidos e esperou. Decorridas 24 horas, sentiu-se mal, chamou uma ambulância. Fizeram-lhe uma ecografia: "Estava tudo bem, disseram-me para esperar para ser atendida por uma assistente social." Não esperou. Horas depois, já na residência, doeu-se: "Tive vontade de ir à casa de banho e o bebé caiu dentro da sanita." Houve alguma histeria na residência de estudantes. Alguém chamou a GNR. Se vier a ser julgada, não será a primeira pelo Cytotec. No final de 2005, subiu à barra do tribunal um caso semelhante a este. Uma jovem, também cabo-verdiana, também estudante, também em adiantado estado de gravidez (19 semanas) introduziu cinco comprimidos na boca e três na vagina. Ao vê-la com dores e hemorragias, a mãe chamou uma ambulância. Frente à suspeita de aborto, um enfermeiro deu conta da ocorrência à PSP. Foi um julgamento-relâmpago. A juíza mandou-a embora numa hora.