"Estou convicto de que não vamos ultrapassar os dez mil abortos por ano. Se assim for, teremos uma taxa de 10% em função do número de nascimentos, o que tornaria Portugal um caso excepcional, com uma das mais baixas taxas de aborto no mundo, em termos de países que legalizaram a interrupção da gravidez por vontade da mulher." Para Jorge Branco, o coordenador do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, estes cinco meses de vigência da lei serão suficientes para avançar com uma extrapolação. "Pelos dados que temos, a situação está mais ou menos estabilizada. E como português e como médico só posso ficar muito feliz por termos uma taxa de aborto inferior à da generalidade dos países da Europa."
A concretizar-se esta previsão, Portugal ficaria, de acordo com os dados existentes sobre a interrupção da gravidez no mundo, ao nível de um país com a Irlanda, em que o aborto é rigorosamente proibido (a lei é mais severa que a anterior lei portuguesa) mas onde as mulheres têm a possibilidade de ir ao Reino Unido interromper a gravidez. Com uma taxa de 9,2% (valor de 2004), a muito católica Irlanda é um dos países da Europa ocidental com a taxa mais baixa. Com menos só a Áustria (3%, segundo dados de 2000), Malta (1,7%) e a Polónia (0,06% em 2004). Destes, só a Áustria tem uma legislação permissiva. Todos os outros países europeus que legalizaram a interrupção da gravidez nas primeiras semanas por vontade da mulher têm taxas acima dos 10%. A Holanda, um dos primeiros países a fazer passar uma legislação permissiva, e considerada a nível mundial um caso de sucesso por ter reduzido paulatinamente a taxa de aborto no novo quadro legal, apresenta 13% (dados de 2004), assim como a Suíça. No mesmo ano, a Espanha tinha 15,8%. E em 2005 a Dinamarca apresentava números correspondentes a 15%, mesmo assim abaixo da Noruega (19,7%), França (21,5%) e do Reino Unido (21,8%).
Foi com base nestas realidades, que se estabeleceu a estimativa, para Portugal, de 20 mil abortos por ano. "Era um número encontrado a partir daquilo que é considerado, internacionalmente, a referência: 20% do número de nascimentos", explica Jorge Branco, que confessa a sua agradável surpresa com a situação nacional. "Não nos pode passar pela cabeça acabar com as interrupções de gravidez, é algo que vai existir sempre, mas o programa nacional de saúde reprodutiva tem como objectivo reduzi-las. E se este número se confirmar, significa que se fez até agora um bom trabalho nesta área."
A alegria de Jorge Branco não é porém partilhada por dois activistas que no referendo do aborto estiveram em campos opostos, Alexandra Teté, da associação Mulheres em Acção (que lutou pelo Não) e Duarte Vilar, da associação para o Planeamento da Família (que defendeu o Sim). Tanto um como outro têm reservas em crer numa taxa tão baixa - e, por motivos muito semelhantes.
"É cedo para tirar sérias conclusões", diz Teté. "Há a possibilidade de ainda se estar a viver um pouco a realidade da lei anterior - tanto no sentido de não se fazer aborto como no de ainda haver aborto clandestino. Aliás, não acreditamos que vá chegar ao fim o aborto clandestino - até por motivos de privacidade." Vilar vai no mesmo sentido: "Não podemos esperar que em cinco meses o aborto ilegal desapareça. Como, de resto, a ida às clínicas espanholas. É preciso esperar para ver. Devemos ser prudentes." Relembrando o estudo que a APF fez, revelado antes do referendo, em que a partir de uma série de entrevistas a uma amostra representativa de portuguesas se chegava a uma estimativa de "16 a 17 mil abortos por ano", Vilar reforça a ideia da prudência. "Mas, obviamente, se for menos que isso só nos temos de congratular."
Quantos aos motivos que poderiam levar a um tão baixo número de abortos, este especialista em planeamento familiar aponta uma hipótese. "Segundo os últimos dados disponíveis, 87% das mulheres em idade fértil usam contraceptivos e uma altíssima percentagem destas, cerca de 70%, usa a pílula que é um método muitíssimo seguro." Teté aponta ainda a possibilidade de "o consumo da pílula do dia seguinte, de venda livre, contribuir para diminuir muito o número de abortos." E conclui: "A minha posição é quem me dera que não fosse feito nenhum. São sempre abortos de mais mesmo quando sejam menos que aqueles do que se previa."