terça-feira, 27 de novembro de 2007

Será que já esquecemos que nada substitui os pais?, Editorial Público 22.11.2007


Um dos textos que hoje editamos no P2 a propósito da rede social on-line que incentivava jovens a automutilarem-se é significativamente intitulado: “Filtros ajudam a proteger, mas não substituem os pais.” Elementar, diríamos. Se num mundo em que todas as janelas tendem a estar abertas, seja ao vermos televisão, ao olharmos para uma banca dos jornais ou ao navegarmos na Internet, não compreendemos que não é possível nem do nosso interesse fechá-las, nem pedir a qualquer Estado que o faça por nós, então o mais importante é aprender a olhar e ensinar os mais novos a olhar. No fundo, dar-lhes referências.
Ninguém sugere que se proíbam os automóveis porque morrem crianças atropeladas – mas todos os pais sabem que têm de ensinar os seus filhos a atravessar a rua nas passadeiras ou as
estradas com cuidado. Tal como todos os pais, arriscar-me-ia a dizer, já terão apanhado sustos, quando um filho lhes escapou no meio de uma cidade movimentada.
Por outras palavras: não se proíba a tecnologia, não se procure na tecnologia o que ela não pode dar, pois, como também refere um investigador nessas páginas, “os primeiros passos são sociais
e estão relacionados com o equilíbrio dos adolescentes e dos jovens”.
Se tudo isto parece evidente, é bem menos evidente a falta de preparação da nossa sociedade e das famílias para os desafios da contemporaneidade. A razão principal por que isso sucede deriva de essas mesmas famílias terem perdido referências e também um quadro de valores. O problema não está na comunidade afectada em Vale de Cambra a maioria dos pais – e estou a
fazer uma presunção que pode revelarse injusta – serem “infoexcluídos”. Está antes em que não sabem como lidar com os seus filhos e com um mundo que é diferente daquele em que eles cresceram.
Não resisto por isso a contar dois pequenos episódios por mim vividos há uns 15 anos, ambos naquela região. O primeiro vivi-o quando, vindo precisamente de Vale de Cambra, subi à serra da Freita por um caminho belíssimo de onde se avistava a queda de água da Mizarela e que desembocava em Albergaria das Cabras, já no concelho de Arouca. A aldeia encontrei-a como a
poderia ter encontrado 50 anos antes, vivendo intensamente um dia de sol após longos meses invernosos, homens dobrados sobre arados que revolviam as terras meio encharcadas, o atrasado mental a vaguear sem destino por entre cães magríssimos. Mas antes de nela entrar cruzara-me com a professora primária, uma portuguesa nascida no Brasil, que falava com sotaque brasileiro e ensinava crianças em cujas casas não deviam abundar os livros, mas sobrava a oferta de telenovelas da Globo. Interroguei-me na altura que referências teriam aquelas crianças solicitadas por mundos tão diferentes, tão distantes.
Mais ou menos na mesma altura, do outro lado dessa serra, julgo que no cemitério de Sul, não longe de São Pedro do Sul, notara como uns pais, numa exótica lápide mortuária, haviam feito esculpir o ecrã de um computador, porque o filho adoraria o seu “pêcê” (escrito assim, exactamente).
Esses dois episódios fizeram-me meditar sobre como viria a ser a sociedade que então estávamos a construir, sobre como ultrapassaríamos, no ciclo de um programa de apoios comunitários, o abismo entre o atavismo secular e o deslumbramento dos novos ricos.
Quinze anos depois verificamos que não chegámos a bom porto – com ou sem défice orçamental.
Exemplo claro disso é o de outra história desta edição, também contada no P2: a de Bruno Silva, um menino de oito anos que, segundo a mãe, “com seis anos, dava 30 toques seguidos na bola”, e agora, por causa dos contratos que os seus pais assinaram com o Benfica e com o Sporting, nem joga futebol, nem tem rendimento escolar. O “pequeno génio da bola”, o futuro Ronaldo que podia tornar-se no pote de ouro dos que o viram crescer em Santa Maria de Galegos, Barcelos, anda triste e a ser acompanhado por um psicólogo. Os pais, que assinaram os dois contratos, dizem-se “enganados”. Por iliteracia? Sem querer ser juiz, é pouco provável. É mais provável que apenas porque são humanos, vivem em Portugal, não são ricos e lhes vendem mais depressa um sonho de fortuna fácil do que alguém lhes lembra que são pais, uma das mais difíceis (e, em Portugal, também das mais raras) profissões do mundo. Mas porventura a única a cujo desaparecimento a humanidade civilizada nunca sobreviveria.
De resto, convém lembrar que não se passa impunemente do século XIX ao século XXI destruindo pelo caminho todas as balizas que guiavam, melhor ou pior, a correcta vida em sociedade. Esqueça-se os filtros na Internet. Deixe-se de sonhar com a multiplicação de “Ronaldos”.
Recorde-se antes que todas as crianças devem crescer num ambiente que lhes dê referências, estabeleça limites e forme valores.
José Manuel Fernandes